terça-feira, 9 de novembro de 2010

ASSIM FALAVA (Z)ILMAR MENDES

A magistratura compra cada vez mais daquilo que a escraviza. Rachando fios de cabelo à navalha, magistrados ruminam a facticidade e relegam aos limites legais sua incompetência perante a Justiça. Prelecionava La Boétie em pleno século XVI: “Nem todos os indivíduos procuram defender sua liberdade e demonstrar que efetivamente querem ser livres”. Preocupados mais na transformação incorpórea que lhe é garantida na investidura do cargo, o Juiz-burocrata, toma suas decisões atento aos ismos, vangloriando-se do Legislativo que lhe aprisiona, pensando ser esta a forma de efetuar a justiça e evitar a injustiça. Esquivando-se assim de sua ethos antrophos daimon . Escondendo atrás de logicidades, racionalismos e legalismos suas decisões.

Devires imperceptíveis atravessam os corpos sociais. A dinâmica do corpo ascende, os micro-fascismos se fazem presentes, e o judiciário acostumado a pairar com um leque de tradições sobre a nação que protege, vê-se paradoxalmente enclausurado em sua própria sacralidade, que outrora lhe era a maior garantidora de seu poder simbólico. Dotados de um ponto de vista funcional que tem o intuito de perpetuar, refutam-se novas idéias que interfeririam no estabilishment , dando o véu da insegurança jurídica subsídio para o cometimento de iniqüidades.

Longe da crítica corriqueira ao formalismo do positivismo, da insistência de despejar moral sobre o pós-positivismo (pós-estruturalista ou neoconstitucionalista) da atual filosofia do direito que tem como seus precursores Dworkin e Rawls ou de conceber o ordenamento como um processo, uma construção social com Habermas e Luhmann. Há fatores apriorísticos, microfisicidades e/ou multiplicidades em qualquer ação inserida no direito, seja da condição individual inata da psique ou do inconsciente, seja das relações de poder que produzem plissamentos que não nos são perceptíveis. Compreendendo que não há teoria separada da prática, e nem prática separada da política. O juiz profere na decisão, rizomática por excelência, não só a decisão em si, ela leva consigo os agenciamentos de poder e os efeitos plissados. O juiz-burocrata sequer visualiza a decisão.

Ocorrem, portanto, fenômenos inatos à vontade do jurista. Um deles é a judicialização social. As microfisicidades do direito englobam a sociedade, têm-se processos novos de territorialização e de reterritorialização dos profanos em relação aos profissionais. Uma expansão de território que afeta a compreensão do jurídico pelos profanos. Tribunais superiores são cada vez mais chamados a ação. Pressupõe-se maior conhecimento e sabedoria jurídica, devido ao Poder Simbólico que portam estas instituições. Denotam ao jurista prestígio, este não podendo arvorar-se em campos que em outro momento lhe conferiram o monopólio do poder (positivismo, legalidade estrita, constitucionalismo...), territorializa-se com campos e/ou multiplicidades que antes eram estranhos ao Direito (Direito e Taoísmo, Direito e Física Quântica, Neoconstitucionalismo...) e até mesmo proposições injustificáveis do ponto de vista acadêmico (decido assim, porque penso assim). O juiz pode decidir com base no “neopóspositivismo”, mas não irá deter o monopólio sobre os fluxos que da decisão se seguem.

A importância das decisões ressalta-se nas palavras de Kafka: em toda palavra de ordem, mesmo de um pai a seu filho, há uma pequena sentença de morte. Adentrando no atual sistema das Ciências Jurídicas e Sociais, a lei não comunica informações, senão as impondo como coordenadas semióticas, ou, portanto, sentenças de morte. O modus operandi do Jurista é procedida por um Opus operatum que não condiz com a dinamicidade, muito menos com a universalização de Direitos, somente perpetuando a figura do Juiz-burocrata. A magistratura nada faz além de desconstruir um altar, e construir outro em seu lugar.

Contrariamente ao pensado na investidura do cargo - o Poder não tem função exclusiva de impor noções jurídicas de proibição, mas, antes disso, criar formas de comportamento que não produzam perigo e que sejam úteis para o sistema social em voga (quem vigia o vigia?) - o magistrado, criado por uma série de poderes, microfisicidades que o atravessam e/ou multiplicidades que o territorializa, sente-se completo dependente do meio em que se insere. Ausente de capacidade de introspecção, sua ética é rechaçada e acaba por se determinar por aquilo que é proibido, permitido ou oferecido. Reduz-se o juiz à boca da lei.

Tal como um peixe que está na água, pouco percebe aquele que está inserto no paradigma processo/decisão. Ao tirá-lo da água, ele pode vir a sentir uma “densidade” diferente, mas não sem antes o choque, ou o medo. O fenômeno que o tira, não precisa ser necessariamente forçado. Um campo é uma série de relações em movimento. Diante de alguma que lhe atravessa, pode então se perceber. Pode vir a ocorrer um devir-revolucionário, um devir-juiz, um devir-professor... Juiz algum é uma ilha. É o juiz singular que em seus movimentos traça linhas de fuga e alçam devires que extrapolam a plutocracia e a politicagem do campo social. É ele que efetua o acontecimento.

Direito é relação, mas de forma contrária, a única ferramenta efetivamente disponível que efetua a mudança é o Si-mesmo. As muletas e os arrimos em que se seguram o corpo judiciário, dizem respeito indiretamente à sua forma de proceder. O Juiz-burocrata não perscruta mais ideal nenhum. Alcançou o êxito, o salário acima da média, o comodismo e não possui mais devires, muito menos o revolucionário. Este mesmo pressupõe que não é sua função se questionar sobre efeitos da decisão e da justiça e por vezes impõe determinado pensamento a si próprio se negando a pensar. Dotados de pressuposições, os casos incidem no jurista de tal forma que sempre irá suscitar determinada forma de decisão. O que é uma idéia senão um parasita que toma conta do cérebro? A justiça não pode ser o caminho de uma via. Todavia, o que as diretrizes das escolas ensinam, são as linhas-limite de sua atuação. O justo sempre irá transcender o jurídico.

No atual momento, não há Democracia que não esteja funcionando como uma fábrica de miséria humana. E não é preciso dizer que é necessário agir conforme uma regra inserida em um plano de imanência, isso fica a cargo dos ismos e das religiões. O devir-revolucionário pode conjurar a vergonha e responder ao que não se pode tolerar. Pode execrar o pensamento panfletário kelseniano do legalismo e estar atento para as posições que atentem ao bem-estar social. Como seria estática a Justiça se ela nasce do dinâmico? A Justiça nada é além de relações. Corpos atravessados por microfisicidades instáveis, não formadas, fluxos indo e vindo, determinações, ponderações, iniciando e encerrando multiplicidades, rios sem margens... Em algum ponto metafísico ela reina absoluta.

A moralidade de rebanho, a filosofia rasa e jurisprudencial, as penitenciárias, o processo cada vez mais tecnocrático de admissão dos juristas... Nossa civilização não cessa de mostrar uma enfadonha servidão voluntária que é, em parte, herança dos legalismos, do juiz-burocrata acomodado e do modelo oligárquico das decisões. O jurista é moldado pelo poder, e também o transmite. Talvez esta análise possa ser feita porque não temos as responsabilidades de um juiz, nem o sentimento de culpa de uma decisão. Ou talvez, de fato, o poder corrompa.

A inércia dos juízes é um fator que contam os governos para assegurar a impunidade de seus atos. Esperançosos com a magistratura dócil e omissa, muita injustiça fora inscrita no legado brasileiro. Adequar-se a um meio doente, não é sinal de saúde. As paredes impostas aos juristas para lhes limitar, não são as erguidas com tijolos, e sim na essência, limitações de consciência.



1- Segundo a definição de Heráclito: A luz que habita a consciência humana. Inerente ao ser humano. Bastando à introspecção sincera para alcançá-la.
2 - Modo de proceder, mantenedor da sacralidade, da tradição.
3 - Poderes, que incidem um sobre o outro A -> B -> C, A incide em B, AB incide em C.
4 - Criadora de multiplicidade. Em ligação com. Afetando de alguma forma aqueles que tomam conhecimento dela ou que esperam por ela.
5 - Tomadas ou juntadas de conhecimento que antes eram estranhos, nesse caso, a sociedade entrando no universo jurídico.
6 - Sistema simbólico, estruturas subjetivas. Construção. Estruturas Estruturantes.
7 - Objetos simbólicos, estruturas objetivas. Linguagem, cultura, conduta. Estruturas Estruturadas